Batalhas, morte e sangue em nome de Deus
>> quarta-feira, 15 de janeiro de 2014 –
ESTUDOS
Foi assim com os judeus, os primeiros monoteístas, que
reivindicaram uma aliança especial com Deus há 4 mil anos. Sua noção de
"povo eleito" foi atacada por João Crisóstomo e outros patriarcas da
Igreja Católica, que no século 4 qualificaram os seguidores do judaísmo de
filhos do Diabo e inimigos da raça humana. Em 325, o 1º Concílio de Nicéia
culpou-os pela morte de Jesus - uma acusação só retirada em 1965, no Concílio
Vaticano 2º, e que insuflou 2 mil anos de injúrias e matanças. Durante a
Inquisição, por exemplo, milhares de judeus foram parar na fogueira; outros
tantos se converteram em massa à fé cristã, já que o batismo era a única chance
de salvação.
No século 7, foi a vez de o islã tentar impor a primazia de
seu Deus sobre os demais. Os exércitos de Maomé partiram da Arábia para invadir
o Oriente Médio, o norte da África e a Espanha. "O objetivo da expansão
não era tanto econômico ou político, como no imperialismo ocidental do século
19, mas a conquista em nome da fé, que eles acreditavam ser a verdadeira",
diz Catherwood. Reconhecidos como "povos do livro", judeus e cristãos
puderam manter sua fé desde que pagassem altos tributos - e, dependendo do
governo em exercício, sofriam perseguições.
Assim, quando o papa Urbano 2º lançou as cruzadas para
tentar recuperar a Terra Santa, em 1096, os espanhóis já vinham lutando contra
os muçulmanos havia quase 400 anos. Urbano prometeu apagar para sempre os
pecados de quem embarcasse na empreitada, que fracassou depois de transformar
Jerusalém em um cemitério a céu aberto. "Cabeças, mãos e pés se amontoavam
nas ruas", escreveu Raymond de Aguiles, um dos cruzados.
Em 1215, o 4º Concílio de Latrão proibiu os judeus de
exercer funções públicas e os obrigou a usar um distintivo de identificação
sobre as roupas - medidas que seriam reeditadas no século 20 por Adolf Hitler e
o regime nazista. É certo que o Holocausto foi executado no auge da sociedade
moderna e racional. Mas a força motriz do genocídio - o antissemitismo - se
nutriu dos mitos religiosos arraigados durante séculos na Europa.
Da mesma forma, só é possível entender os conflitos dos anos
90 nos Bálcãs tendo em conta as heranças religiosas do passado. No século 14, a
região foi invadida pelos turcos-otomanos - o último império muçulmano, que
determinava a identidade das pessoas pela religião a que pertenciam. A maioria
delas pôde continuar acreditando no Deus do cristianismo, sem os mesmos
direitos dos "fiéis". Muitos, no entanto, se converteram ao islamismo
- e veio o problema. "Os atuais bósnios muçulmanos descendem daqueles que
se converteram durante a conquista turca", diz Catherwood. "Para os
sérvios, eles são traidores."
Cristãos ortodoxos, os sérvios até hoje celebram o ano de 1389
- quando Lazar, chefe das tropas sérvias, morreu enfrentando os muçulmanos e
virou mártir. O líder sérvio Slobodan Milosevic invocou esse sacrifício em seus
discursos de 1989, acendendo a chama dos confrontos que levariam a uma matança
desenfreada.
Nas palavras do historiador americano Mark Juergensmeyer, da
Universidade da Califórnia, a linguagem religiosa tem o poder de
"trasladar o conflito humano a uma dimensão cósmica". Traduzindo: no
dia-a-dia, não matamos gente; mas, se Deus ordena, podemos. Nesse caso, a
violência não seria um ato selvagem, mas o cumprimento da vontade divina.
Fundamentalismos
O século 20 viu crescer uma devoção militante nas principais
religiões, chamada popularmente de fundamentalismo. "Alguns
fundamentalistas não hesitam em fuzilar devotos numa mesquita ou matar médicos
que fazem aborto. A maioria não é violenta, mas rejeita conquistas da
modernidade, como a democracia, o pluralismo, a tolerância religiosa e a
separação entre religião e Estado", diz a pesquisadora inglesa Karen
Armstrong, autora do livro Em Nome de Deus.
Para esses radicais, nossa sociedade racional e pecadora tem
levado a uma crise moral. "O fracasso da modernidade seria causado pela
ausência de Deus", diz o sociólogo francês Jean-Louis Schlegel. Essa reação
ocorre não apenas nas religiões monoteístas mas também no hinduísmo e no
budismo.
Apesar das enormes diferenças entre os grupos
fundamentalistas, eles geralmente buscam reconduzir sua religião ao caminho
"puro e verdadeiro" de seus ancestrais. Por isso, os alvos principais
são os seguidores moderados de sua própria crença. Foi o caso dos protestantes
americanos que, no início do século 20, quiseram se distinguir dos protestantes
liberais e se denominaram "fundamentalistas" - daí o nome. Eles queriam
voltar aos fundamentos da tradição cristã, o que incluía interpretar a Bíblia
da forma mais literal possível e parar de ensinar a Teoria da Evolução nas
escolas - uma campanha que ainda divide os EUA.
Dentro do judaísmo foi criado o grupo ultraortodoxo Naturei
Karta, que é contra a existência do moderno Estado de Israel. Para esse grupo,
o regime israelense é herético porque sua ideologia fundadora - o sionismo -
rejeitaria Deus e a Torá (o livro sagrado). Rabinos do Naturei Karta apoiam o
presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, que prega a destruição de Israel.
Já o fundamentalismo islâmico vem do grupo Irmandade
Muçulmana, fundado em 1928 no Egito. Para ele, o islã entrou em decadência ao
adotar o modo de vida ocidental. Portanto, é preciso derrubar os governos
moderados e substituí-los por regimes baseados na sharia - a lei islâmica. São
essas ideias que inspiram terroristas como os da Al Qaeda.
Mas o radical islâmico que joga um avião contra um prédio
não acredita no mesmo Deus que um muçulmano moderado? Como o Deus de um pode
condenar esse crime, se o Deus do outro promete transformá-lo em herói? Aí é
que está: o Deus é o mesmo, mas as interpretações de sua mensagem são
distintas. O suicídio, por exemplo, sempre foi pecado na tradição islâmica.
Hoje, no entanto, é interpretado como martírio pelos fundamentalistas - e usado
como arma por terroristas.
Pomos da discórdia
Um resumo de 4 conflitos recentes, sanguinários e de fundo
religioso
CONFLITO - Judeus x Muçulmanos
ONDE - Oriente Médio
QUANDO - Em curso desde 1947
RESULTADO - Mais de 7,5 mil mortos de 2000 para cá
O conflito começou como disputa territorial, por causa da
criação do Estado de Israel, mas assumiu caráter religioso. Hoje,
fundamentalistas judeus e islâmicos são o maior entrave para a paz. Um não
aceita a existência do outro e quer varrer o oponente do mapa para sempre.
CONFLITO - Hindus x Muçulmanos
ONDE - Índia e Paquistão
QUANDO - Fim da década de 1950
RESULTADO - 500 mil mortos
A violência eclodiu com o fim do domínio colonial britânico
sobre a Índia, em 1947. Os muçulmanos se negaram a integrar um país com os
hindus, foram à guerra e criaram o Paquistão. De lá para cá, outros dois
conflitos já ocorreram, por causa da disputa pela região da Caxemira.
CONFLITO - Católicos x Protestantes
ONDE - Irlanda do Norte
QUANDO - Décadas de 1960 a 1980
RESULTADO - Quase 4 mil mortos
A rixa histórica entre cristãos irlandeses descambou para a
violência embalada por um componente político: de um lado, a maioria
protestante (chamada unionista) quer continuar ligada ao Reino Unido; do outro,
a minoria católica (nacionalista) almeja pôr fim ao domínio britânico.
CONFLITO - Cristãos x Muçulmanos
ONDE - Bálcãs
QUANDO - Décadas de 1980 e 1990
RESULTADO - Mais de 100 mil mortos
Durante décadas, o ditador comunista Josip Tito manteve as
províncias da Iugoslávia unidas à força. Com sua morte, em 1980, o nacionalismo
religioso explodiu numa espécie de luta de todos contra todos - incluindo
sérvios (ortodoxos), bósnios (muçulmanos) e croatas (católicos).